Ee blog terá, pelo menos duas vezes por semana, as minhas opiniões e comentários sobre desporto – sobretudo automobilismo – e sobre a vida nacional (portuguesa e brasileira) e internacional, com a experiência de 52 anos de jornalismo, 36 anos de promotor e 10 de piloto. Além de textos de convidados, e comentários de leitores.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

RALIS: HOMENAGEM a HEITOR de MORAIS, o MAIOR INOVADOR.
Ao rebuscar o meu arquivo de textos, não resisti à tentação de publicar este, escrito a 19 de novembro de 20111 - e publicado no Autosport, apesar de repetir parte da minha crónica da evolução dos ralis:
Fiquei chocado, muito chocado. Como só a realidade nos esmaga. Para quem tem consciência.
Mais do que a notícia que já previa e que me roía de remorsos pela falta de companhia que lhe fiz nos últimos tempos, foi acordar para a total ausência de memória humana. Não do nosso minúsculo e mesquinho e atrozmente egoísta meio automobilístico, que nem disso tem a exclusividade. Mas, do ser humano, com todos os defeitos desta raça, que apesar de estar cada vez mais velha não tem respeito pelos que lhe abriram caminhos, pelos que lhe ensinaram a ser e a fazer o que hoje podiam ser e fazer muito melhor.
No jornalismo é ainda pior. Não que os profissionais da Comunicação Social – os poucos dignos desse nome que ainda o conseguem ser – não tenham conhecimentos ou vontade para tal. A realidade – a tal que me chocou – é que, como o universo animal o sabe, a memória humana é demasiado curta. Mais curta fica quando as redações passaram a ser tomadas de jovens com salários mais curtos ou que simplesmente não foram educados na verdadeira história daquilo sobre que escrevem. Neste caso, o automobilismo desportivo.
Repetirei para vocês, leitores, o que falei há pouco para o jovem diretor – momentos depois de ter tido a notícia tardia de que, no dia 15, o corpo de Heitor Morais tinha perdido a vida que conhecemos e que ele tanto glorificava com a sua esbanjadora alegria, espírito aguçado e, sobretudo, indomável de determinação para viver e fazer coisas – muitas vezes inovadoras – e, amiúde, para ajudar os outros, principalmente os amigos que nele sempre encontravam um apoio, um conselho sapiente.
O Heitor foi – a seguir ao César Torres – a figura mais influente para o automobilismo português.
O karting muito lhe deve: foi um dos maiores pioneiros e impulsionadores, com Luis Alves, Moreira Leite e outros, desde 1960, como piloto, fundador do Kart Clube de Lisboa, em Outubro de 1961, e como dirigente.
Equipa FIAT Torralta: Heitor, terceiro da esquerda.
Mais tarde, piloto (em Morris Cooper S), ganhou o título Nacional de Ralis, mas foi como organizador – no seu, do “seu” e nosso eterno “Clube dos 100 à Hora”, de que foi o principal esteio – que o Eng. Heitor Morais merece a total reverência de todo o automobilismo português.
Foi ele quem mudou, em 1963, os ralis nacionais para sempre. Diria mais, foi inspirado na evolução que César fez das ideias do Heitor que os ralis mudaram para o que passaram a ser, sob o aspecto de decisão em provas cronometradas (PEC).
Para que os mais jovens se apercebam – e fixem isso – foi a inovadora Taça de Ouro, do 100 à Hora, em 1963, e depois a XIV Volta a Portugal, que transformaram os ralis em meros passeios com algumas provas “de tacos” em verdadeiras competições de estrada. Heitor inspirou-se no Rali da Montanha de 1952, do saudoso Eng. Carlos Fonseca, do “Estrela e Vigorosa”. Ocasional e experimentalmente, este fechou um troço da EN101 entre o Cavalinho e o Alto Quintela, fazendo os seus sinuosos e perigosos 10km impossíveis de cumprir à média de 50km/h entre os dois Controles Horários (CH). Na Volta de 63, Heitor usou penosas estradas florestais, sem marcos quilométricos. Isso permitiu-lhe “roubar km”, o que tornou impossível a todos os pilotos cumprir a média de 60km/h (à noite) entre CH. Nessa época, as estradas florestais pouco tráfego tinham, pelo que, sem as fechar, passaram a ser precursoras das PEC. Genial. Os ralis passaram a ser desafiantes e verdadeiras competições automóvel.
Nos últimos anos, com um “100 à Hora” sobrevivendo apenas à custa da paixão e esforço de Heitor, ele voltou a inovar nos ralis de clássicos, fazendo das últimas Voltas a Portugal de Clássicos não meros passeios entre almoçaradas e jantaradas, mas provas competitivas. O Manuel Ferrão que o diga quando me pôs ao volante do seu Escort TC pela Serra de Arganil há uns anos… Também aqui deixou rasto. O bem-sucedido Rali de Portugal Clássico do ACP inspira-se na sua Volta. Aliás, grande parte da equipa desportiva do ACP é discípula dele. Como tantos outros.
Apesar de tudo o muitíssimo que ele fez pelo automobilismo, o Heitor era dos poucos homens deste nosso desporto, para quem os meios sempre foram tão importantes quanto os fins… Que o digam quem teve a sorte de conviver com ele.
Nas eleições para o ACP que disputou com César Torres fui seu apoiante declarado. Agora, passadas mais de três décadas vejo como foi, no entanto, bom e melhor para o nosso automobilismo que César tivesse sido eleito. Heitor teria tratado todos de forma leal e justa, mas jamais teria atingido os objetivos que César conquistou – como ninguém – sobretudo a nível internacional. As minhas palavras de então para Francisco Pinto Balsemão – eleito Presidente do ACP – estavam, em parte, erradas, apenas inspiradas na grande admiração, confiança e amizade pelo Heitor.
Os conselhos do Heitor enriqueceram-me sempre. Na vida, que tanto nos consome, e que ele encarava com uma filosofia única, ou como piloto. Referi acima o temível Cavalinho, um ícone dos ralis dos anos 60 e 70. Nos meus carros, a nossa amizade, cumplicidade e respeito mútuo fizeram com que umas vezes ele fosse meu navegador ou eu “pendura” dele. Jamais me esqueço de, ainda principiante, em 1965, a subir o Cavalinho, no Cortina GT, ele me gritar: “Tira o pé”. Não do acelerador, mas do travão. Obedeci e acelerei, evitando a blocagem das rodas dianteiras na terra e a batida certa, de frente, naquela esquerda apertada.
E, os comentários poéticos dele sempre que passávamos – em treinos ou mesmo em prova – pelas belas paisagens do norte. E as estórias dele – sempre um “bon vivant” – com o Henrique Burnay Bastos ou o “Moraisinho” ou com o Romãozinho no Monte Carlo, ou ainda o hilariante episódio da interrupção de um treino numa florestal para descer ao rio e … polui-lo. Ou também o treino de um Rali TAP com o “Néné” Neves a dormir a sono solto no banco traseiro do meu carro enquanto o Heitor tirava as notas numa passagem rápida no topo da Serra de Arganil.
Precisaria de um livro, do livro que infelizmente não escrevi sobre ele, para vos contar as muitas estórias deste amigo como poucos, desta figura notável. Estórias que muito me ensinaram, divertiram e encaminharam. Que falta nos fará Heitor. Como poucos. Espero que as nossas almas se encontrem no outro espaço para me ensinares ainda mais. E continuares a dar-me e a sóbria alegria, com que sempre encheste todos.
À Maria Laura, ao Heitor António e à Nucha resta a saudade, como a nós, os que sabem dar-te o valor que tiveste, meu caro Heitor. E que continuas a ter para o automobilismo, para os ralis, em que foste o primeiro, o maior de todos os inovadores.

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